meu cabelo, minha mãe e eu
"toma esse suco, tem vitaminas muito boas pro crescimento do cabelo!" e outras coisas que ouvi. uma história sobre a careca com a qual nasci até a careca que tenho hoje e sobre minha mãe.
quando era criança, lembro de ter o cabelo bem curtinho. sempre que olhava no espelho o via na mesma altura e nem chegava no ombro! achava chique, como via em programas de TV com minha avó algumas mulheres com o cabelo curto e sempre repetia pra ela o quanto gostava do meu “corte internacional”. minha mãe, desesperada, queria muito que meu cabelo crescesse para poder fazer todo tipo de penteado nele e ficava frustrada sempre que estava comigo no espelho, vendo que nada mudava, meu cabelo ainda não chegava no ombro.
lembro de fazer todo tipo de simpatia para que meu cabelo crescesse e comer todo tipo de comida diferente que estimularia a produção de algum sei-lá-o-que que me tornaria a rapunzel da zona norte em poucos dias. e nada aconteceu, até mais ou menos os meus oito ou nove anos. parecia ter sido do dia pra noite: o que era um corte internacional tornou-se uma espécie de corte gabriela, indomável e chegando até a metade das costas. minha mãe se desinteressou um pouco em fazer penteados em mim, já que ela tinha desistido do seu cabelo gabriela-indomável com anos de alisamento, e isso me desmotivou bastante em cuidar dele.
de vez em quando, tentava amaciar seu coração e pedia que pelo menos o penteasse para mim depois do banho, sentando na sua cama com a escova e um olhar meio pidão. ficava em silêncio durante todo o longo processo, os dentes da escova desfazendo alguns nós insistentes e difíceis e os dedos dela passeando pelas pontas dos fios com algum creme de pentear. ela cantava tetê espíndola, maysa, elis e meus olhos sentiam vontade de chorar por algum motivo que não entendia muito bem, me sentia tão próximo da minha mãe quando estávamos assim e não queria nunca que aquilo terminasse.
odiava pentear os cabelos sozinho, odiava dormir sem minha mãe para fazer carinho neles, já que ela tanto tinha rezado e feito promessas para que ele crescesse. quando estava entre as meninas da minha turma, era o único a não fazer algum penteado diferente, bonito, querer exibir as mechas bem cuidadas (que não eram tão bem cuidadas assim longe das mãos de minha mãe). nenhuma delas se importava com a bagunça desgovernada que era o meu cabelo, porque éramos crianças, mas sempre houve essa lacuna entre nós — os lacinhos, xuxinhas, presilhas que eu não queria usar.
por anos não deixei ninguém colocar uma tesoura perto do meu cabelo que não fosse a cabeleireira que morava perto da família. ela cortava o cabelo da minha mãe e da minha avó, e sabia o sufoco que tinha sido deixá-lo daquele tamanho, então não o cortaria muito. em todas as minhas visitas, ela fazia alguma comparação com bethânia, sorria simpática e perguntava se eu gostava de todo aquele volume e comprimento. e que outra resposta eu poderia dar ao cabelo que tanto me aproximava de minha mãe em noites sem dormir?
mais ou menos por volta dos meus doze anos, vendo as meninas da minha turma usando argolas enormes penduradas nas orelhas e tingindo as madeixas de cores fantasia, senti que precisava fazer algo. a esse ponto, já tinha total conhecimento de que algo me diferia delas e sabia bem o que era, mas não queria deixar isso transparecer. todas elas se cuidavam tão bem, estavam sempre com as unhas pintadas e com litros de perfume no pescoço e riam de um jeito que parecia tão natural. nunca fui natural como elas, me sentia roteirizado em cada passo que dava e em cada segundo que penteava meu cabelo sentia-me torturado. queria ser pelo menos um pouco parecido com elas, para que conversássemos sobre alguma linha de cremes de pentear ou coisa do tipo ao invés de tentar encontrar uma interseção entre garotos bonitos do colégio e videoclipes da britney.
perguntei para minha mãe se uma outra amiga dela, a que alisava o cabelo dela, poderia ir na nossa casa cortar meu cabelo. disse que queria fazer algo diferente, que precisava mudar algo. lembro de ver o nervosismo nos olhos dela, porque no mesmo ano havia a apresentado a uma colega de outra turma que tinha um corte “joãozinho” (que eu pensava ser um corte internacional) e comentado sobre o quanto queria ser como ela. essa colega era uma boa pessoa, divertida e carinhosa e tinha um namorado — e eu sabia o que afligia minha mãe, e aquilo também me afligia. se ela soubesse o esforço que estava fazendo para ter algo em comum com as garotas da minha turma, não teria me lançado aquele olhar.
mesmo com certa preocupação, ela ligou para a amiga. “não faça nada muito radical, você é criança” lembro de ouvir. estava naquela fase da vida onde ter doze-quase-treze faz você se sentir um adolescente capaz de fazer tudo, então quis ignorar o comentário. mas entendia perfeitamente o que ela queria dizer com as palavras radical e criança, sobre como eu era novo demais e me arrependeria de me mostrar tanto ao mundo. para não ceder demais e também não fazer algo de menos, me conformei com um corte no ombro, tirando os excessos de cabelo que chegavam até o meio das costas.
nesse ano, depois de ouvir todos os elogios dos meus amigos, professores e parentes ao corte novo, chamei uma menina para sair. parecia ter ido por água abaixo o plano de me misturar por entre as garotas da minha turma desde o instante em que consegui enxergar melhor meu rosto no espelho. me sentia uma espécie de super-heroína, um sansão reverso que havia ganhado sua força ao se desfazer do cabelo. enxergava nos meus olhos as protagonistas de todas as fanfics que devorava na guia anônima do computador da família quando todos já tinham ido dormir, enxergava alguém legal e descolado e que poderia fazer de tudo. não me sentia criança, mas me sentia certamente radical.
essa mudança não sacrificou minha relação com minha mãe: aos olhos dela, pelo menos visualmente, nada estava transparecendo e tudo continuava igual. agora as simpatias e rezas dela se dirigiam a outros lugares, porque sua preocupação não era mais me fazer ter longas madeixas, mas sim me fazer o mais parecido com as filhas de amigas dela. sentia que tudo ia bem, porque saía com tantas das meninas amigas de amigas minhas por aí e ninguém parecia me descobrir, nunca. íamos ao shopping e dávamos voltas e voltas pelas mesmas lojas, entrávamos nos provadores dando risinhos tímidos e nos beijávamos por alguns minutos entre os cabides e camisetas da seção masculina que eu sempre queria experimentar.
chegando em casa, às vezes deitava entre meus pais e pedia que fizessem carinho nos meus cabelos agora mais curtos. e eu dizia que tinha só comido um sorvete, encontrado outros adolescentes, experimentado algumas roupas. tudo isso era perfeitamente acreditável, ou pelo menos eles fingiam acreditar até o momento que não deu mais. com meus catorze anos, recebi um convite que fez meu coração tropeçar e cambalear sem sair do lugar: ir ao shopping comer misto quente no dia dos namorados depois da aula! lembro perfeitamente de mandar SMS para minha mãe (porque estava sem sinal de internet) avisando que iria encontrar um amigo para dar uma volta.
não sei se foi por ser uma terça-feira ou por ser dia doze de junho, mas ela estranhou essa minha decisão repentina. passei o resto do dia inteiro me sentindo observado, como se um vulto me perseguisse desde a cantina do colégio até a sala de aula e então da sala de aula até o shopping. ao encontrar com minha amiga, nada disso parecia importar mais por algumas horas. comemos o misto quente, bebemos café gelado e conversamos sobre a escola e sobre os filmes e músicas que nos interessavam, sobre planos que tínhamos e fofocas e histórias pessoais. ela parecia infinitamente mais bonita do que as garotas do meu antigo colégio, com as quais tentei me parecer por anos, seus cabelos cortados na barbearia eram curtos e não os conseguia segurar, seu sorriso era largo e sua risada alta e desengonçada. quando entramos num provador qualquer, lembro de beijá-la desesperadamente, como se aquele fosse o último beijo que daria em qualquer pessoa na vida. passamos por algumas pessoas, abraçados, enquanto estávamos indo embora e recebemos olhares maldosos como resposta: ela apenas me abraçou mais forte e sorriu.
pedi que esperasse dentro do shopping quando minha mãe viesse me buscar de carro, porque tinha mentido, e ela entendeu. demos um selinho tímido e andei até a porta, procurando pelo carro. minha mãe não me deu boa noite e nem sorriu para mim durante toda a viagem, e senti que toda a coragem do meu corpo havia evaporado num instante. pensei em todas as amigas que ela tinha que trabalhavam por perto do shopping, que nunca haviam me flagrado com nenhuma menina nos últimos anos ou talvez nunca tivessem dito nada e o ar parecia me faltar, sem conseguir falar nada sobre esse meu amigo ou sobre meu dia, minhas aulas de mais cedo no mesmo dia. não consigo me lembrar se minha mãe disse algo pra mim, ou se olhou no meu rosto, mas me recordo do silêncio, com o rádio desligado e um choro quieto vindo dela durante todo o trajeto. não ousei chorar também.
tenho poucas lembranças dos outros seis meses desse ano, que passaram em câmera lenta. as coisas se confundem, as situações vazam por entre as lacunas entre esse ano e o ano seguinte e não consigo traçar perfeitamente uma cronologia dos acontecimentos. o que consigo recordar é de ter me apaixonado por uma das meninas que estudava comigo e tentar abafar isso de todas as formas para os meus pais. de vez em quando, ia na casa da minha avó pedir carinho dela também — e para ela contava sobre todas as minhas amigas e amigos que tentava esconder dos meus pais a todo custo. não havia um esforço para entender vindo dela, mas sim um carinho imediato pelos amigos aos quais ela se referia como “meus netinhos postiços” e dizia que queria conhecer algum dia, para um almoço em família na casa dela. toda vez que a escutava falar essas palavras enquanto desembaraçava meus cabelos com as pontas dos dedos, sentia uma vontade devastadora de pedir para que conversasse com minha mãe.
os borrões do meu ensino médio sufocados pela pandemia foram recheados por momentos onde eu tentei pelo menos gostar de um menino ou outro também, passando horas empilhando conversas e respostas de garotos em uma rede social ou outra que ignorava depois de pouquíssimo tempo. todos eles pareciam interminavelmente desinteressantes e procurar por seriados em sites pirata era um passatempo muito mais legal! em algum desses dias de isolamento social, agarrei uma tesoura que meu pai usava para aparar a barba e peguei uma xuxinha. dividi meu cabelo em seções e cortei fora um tufo enorme de cabelo, olhando nos meus olhos no espelho sem acreditar no que tinha feito.
minha mãe não disse nada, mas meu pai ficou chateado comigo. não entendi o motivo na época, mas quando coloquei juntas as peças do quebra-cabeça, desde o dia em que choramos abraçados na minha cama quando ele disse apenas “eu sei” e “eu te amo” depois de perguntar se eu tinha algo a confessar até o dia que ele me viu vendo fotos de undercuts e sidecuts no celular e entendi que ele queria ter me levado para cortar o cabelo com alguém que soubesse de verdade o que estava fazendo. ele queria estar do meu lado, me ver explicar o que queria ao barbeiro, queria pagar pelo corte e me dar aquele momento de presente. queria que ele entendesse que fiz aquilo para segurar a mudança com minhas próprias mãos e saboreá-la do meu próprio jeito, mas nunca disse isso a ele, apenas me conformei com sua chateação ter vindo de um lugar de carinho.
desde o ano em que entrei na faculdade, tudo passou rápido demais por entre descolorações, matizadores, franjas e cortes diferentes. fui do cabelo no ombro até um corte mais rente ao queixo e depois voltei ao meu corte internacional batidinho na nuca. já não queria me parecer com ninguém além de mim mesmo, queria segurar a sensação de poder estar vivo com as duas mãos e jamais soltá-la. e nesse primeiro um ano e meio fiz de tudo para me sentir o mais perto de mim possível, mesmo sabendo que o inevitável estava por vir. pensava naquela colega de outra turma, descolada, que estava no nono ano quando eu estava no sexto ou sétimo — pensava na foto que vi dela quando estava na faculdade, anos atrás, com o cabelo raspado e um sorriso de orelha a orelha. não faça nada muito radical, você é criança. e eu já não era mais uma criança, e as definições de radicalismo aos olhos da minha mãe também tinham mudado.
com meus vinte anos fui até a casa de um amigo (que provavelmente está lendo isso) com quem já tinha comentado centenas de vezes sobre meu desejo de ficar careca e desapegar do meu até então moicano vermelho-fogo que meus pais apelidavam de cabelo de curupira. estava nervoso durante todo o processo, desde o instante em que saí de casa até ouvir “tem certeza?”. acho que nunca tinha sentido tanta certeza de alguma mudança estética em toda a minha vida (diz a pessoa que tem cinco tatuagens feitas sem muito planejamento), fumamos juntos e passei o caminho no ônibus muito feliz, sorridente, não conseguia parar de abrir a câmera frontal do telefone para me admirar.
o problema começou assim que desci do ônibus e andei uns passos tímidos até meu prédio. me sentia observado por alguém com olhos grudados nas minhas costas, como naquele dia doze de junho, terça-feira. sentei na escadaria, sem ter coragem de abrir a porta e comecei a chorar copiosamente — acho que até agora não tinha dito para ninguém que chorei nesse dia. com a cabeça repousada nas mãos, chorei baixinho por mais ou menos uns cinco minutos, pensando no que possivelmente poderia dizer aos meus pais. naquele momento estava me vendo na epítome de mim mesmo, para além da filha que era aos olhos deles e do filho que era aos meus olhos. o que importava era que algo tinha finalmente mudado pra valer, algo que esperei durante toda a minha vida para conseguir ver no espelho.
liguei para minha mãe, da escadaria do prédio (e acho que também não tinha contado isso pra ninguém). ela não atendeu. mandei um áudio dizendo que tinha feito uma coisa diferente, e que estava morrendo de medo dela me odiar pra sempre, o que foi extremamente dramático da minha parte e mesmo assim a coisa mais verdadeira possível. estava apavorado com o pensamento de subir as escadas, abrir a porta de casa e me ver novamente dentro do carro dela com o rádio desligado e o som de choro sendo o único no ambiente. ela respondeu apenas pedindo que eu subisse, sem muitos rodeios e não ousei desobedecer.
quando abri a porta de casa, ela estava na cozinha, sem ter dado a menor importância ao meu desespero. tirei os sapatos e me sentei no sofá, esperando que ela viesse até mim. quando nossos olhos se cruzaram, pensei que ia vomitar. ela sorriu de orelha a orelha e passou a mão na minha cabeça, rindo. não parecia brava, não parecia me odiar para sempre e a atmosfera definitivamente era diferente daquela que dividimos no trajeto do shopping até em casa anos atrás. quando senti o carinho de minha mãe nos fios espetados da minha cabeça recém raspada, suas unhas vermelhas deslizando da minha testa até a nuca, chorei mais ainda por ver que essa mudança não sacrificaria a habilidade que ela tinha de me por no colo, mesmo sem ter cabelo para pentear.